top of page

Blog

ENTREVISTA COM JOSÉ DE SOUZA SILVA, PESQUISADOR DA EMBRAPA ALGODÃO

  • Produção: Jaqueline Araújo (Educadora Popular)
  • 4 de set. de 2017
  • 10 min de leitura

O Blog O Colibri, entrevista José de Souza Silva, Pesquisador da Embrapa Algodão. Nascido em Areia-PB, ele é Engenheiro Agrônomo com Mestrado em Sociologia da Agricultura e Ph.D. em Sociologia da Ciência e Tecnologia; Especialista em inovação institucional; Investigador das relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade no processo de inovação; atualmente realiza um experimento social metodológico no Ceará, Paraíba e Pernambuco para a validação de uma metodologia de construção coletiva de Projetos de Vida Comunitários, um projeto de pesquisa-ação-participativa do Núcleo de Agroecologia da Embrapa Algodão, do Projeto MDA/CNPq, Edital 38/2014.


Esta entrevista foi concedida a equipe de ‘O Colibri’ depois da palestra: ‘A História da Ciência, no “desenvolvimento” do Semiárido e os cenários emergentes para ambos’ realizada pelo pesquisador, no Programa Semiárido em Foco, do Instituto Nacional do Semiárido, no mês de julho de 2017.



O Colibri: Como você percebe o papel do Instituto Nacional do Semiárido (INSA) no desenvolver da ciência no / do / com / para o Semiárido Brasileiro?

JSS. Uma sociedade opera através de suas instituições. Por isso, o fenômeno da vulnerabilidade-sustentabilidade das sociedades está associado ao fenômeno da vulnerabilidade-sustentabilidade de suas instituições. Então, o papel de uma instituição pública é contribuir para a sustentabilidade da sociedade que o criou, que o mantém e que pode transformá-lo e inclusive extingui-lo. Como instituição pública, com um mandato exclusivo para o Semiárido Brasileiro, o Instituto necessita assegurar-se de que seu modo de inovação (modo de interpretação + modo de intervenção) contribui para a sustentabilidade dos povos dessa região. A forma de saber disso é verificando se o contexto é a referência máxima, inspirando suas iniciativas, se a interação com esses povos é a estratégia permanente, orientando suas intervenções, e se a ética é o compromisso não negociável da instituição com a felicidade desses povos e a sustentabilidade de seus modos de vida. Para atuar sob a influência de um paradigma contextual, interativo e ético, uma instituição científica necessita resignificar os conceitos de conhecimento e inovação, adicionando um adjetivo a cada um e expressando o novo significado na forma de uma premissa, indicando uma verdade: (a) o conhecimento significativo é interativamente gerado e socialmente apropriado no contexto de sua aplicação (dimensão prática) e implicações (dimensão ética); e (b) a inovação relevante emerge de processos de interação social (intercâmbio) com a participação (diálogo) daqueles que a necessitam (dimensão prática) e serão por ela impactados (dimensão ética). Em outras palavras, para estar seguro de que seu mandato institucional está sendo cumprido de forma contextual, interativa e ética, o Insa pode revisar, junto com os movimentos e organizações sociais, que representam os povos do Semiárido, quais são os desafios do contexto para o Instituto (como, por exemplo, acesso a inovações para a convivência com a semiaridez, acesso a água para o consumo humano, animal e vegetal), ou seja, desafios dos povos da região para seu mandato institucional. Esses desafios, interativamente validados com os povos da região, servem de critérios para o Insa revisar seus objetivos institucionais, pois cada objetivo estratégico deve ser concebido a partir de um desafio que justifica a sua existência. Revisados os objetivos institucionais, o Instituto pode revisar seu modo de interpretação, seu modo de intervenção e suas capacidades, duras (infraestrutura, arquitetura organizacional, divisão funcional, recursos materiais, financeiros) e brandas (capacidades filosóficas, conceituais, metodológicas, científicas, técnicas, gerenciais, de negociação, de comunicação, de articulação com movimentos e organizações sociais do Semiárido), para apoiar os povos da região na compreensão e manejo de macro desafios que a semiaridez coloca para o mandato do Insa. Portanto, a gestão do Instituto seria uma gestão por desafios, na qual seu modo de inovação institucional assegura (a) a correspondência contextual (sintonia) das atividades fins (objetivos institucionais / estratégicos) com as necessidades, realidades e aspirações dos povos do Semiárido Brasileiro, para que suas contribuições alcancem alto grau de relevância para a felicidade e sustentabilidade desses povos, assim como para a resiliência de seus modos de vida comunitários, e (b) a coerência institucional da gestão das atividades-meios, para que essas produzam eficientemente o apoio adequado e suficiente para viabilizar as atividades fins.

O Colibri: Quais são os maiores desafios para desenvolver ciência hoje?

JSS. Historicamente, desde 1492, a ciência praticada na África, América Latina e Ásia foi, nessa sequência, de natureza imperial, colonial, internacional/nacional e comercial. Durante o reinado da Botânica Econômica, a ciência imperial era praticada exclusivamente por cientistas de impérios do Norte para gerar benefícios exclusivos para seus impérios correspondentes. No reinado da Química Agrícola, a ciência colonial era praticada principalmente por cientistas das colônias tropicais, formados na cultura e tradição científicas da Europa, que adotavam a agenda de pesquisa de interesse dos impérios que os financiavam. Na era da Genética Mendeliana, a ciência internacional foi praticada pelos Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola (CIPAs), que condicionava a ciência nacional dos Institutos Nacionais de Pesquisa Agrícola (INPAs). Atualmente, a partir da emergência da Biologia Moderna, capaz de decifrar e alterar o código da vida, prevalece uma ciência comercial, apátrida, financiada para inscrever no genoma das plantas, animais e micro-organismos estratégicos para a humanidade a gramática econômica dos interesses comerciais de meia dúzia de corporações transnacionais que oligopolizam o sistema agroalimentar mundial, dos recursos genéticos às cadeias de supermercado. Então, os desafios para desenvolver ciência hoje dependem da natureza da ciência que se quer praticar. Por isso, para mim, o maior desafio hoje para uma instituição científica é decidir entre praticar uma ciência para o lucro ou uma ciência para a vida. Por surpreendente que possa parecer, eu cultivo uma premissa filosófica popular de consequências práticas profundas: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Quando duas coisas são muito parecidas, mas têm implicações divergentes, necessitamos de critérios para distinguir uma da outra. Então, considerando que não existe uma ciência, universal, neutra e objetiva, uma coisa é o conjunto de desafios, objetivos, políticas e estratégias institucionais para viabilizar a prática de uma ciência sem consciência, para o lucro e não para a vida. Outra coisa, radicalmente diferente, é o conjunto de desafios, objetivos, políticas e estratégias institucionais para viabilizar a prática de uma ciência com consciência, para a vida e não para o lucro. Então, que é mais importante que a vida? Se uma instituição responde que nada é mais importante que a vida, terá superado seu maior dilema contemporâneo. A sabedoria dos povos originários nos ensina que, frente a duas ou mais opções em conflito, se uma dessas opções é a vida, é sábio decidir pela vida. Se a ciência moderna fosse guiada por essa premissa da sabedoria ancestral, a bomba atômica jamais teria sido inventada, pois sua única função é extinguir a vida. No Semiárido, a superação desse desafio, de forma favorável à vida, exige desordenar a ciência que foi ordenada para o desenvolvimento, ou seja, para o capital, depois da Segunda Guerra Mundial, e reorienta-la para a vida. Na prática, instituições científicas da região, como o Insa, ou atuando na região, como a Embrapa, necessitam considerar sua participação na construção do paradigma emergente do Bem Viver, cujo horizonte utópico é a construção de comunidades felizes com modos de vida sustentáveis. Como uma alternativa não capitalista, uma alternativa ao (e não de) desenvolvimento, o Bem Viver significa outra filosofia de vida, outro modo de vida: outra forma de ser e sentir, pensar e agir, produzir e consumir, comunicar-se e relacionar-se, no contexto da interdependência entre todos os seres vivos humanos e não humanos.


O Colibri: A ciência pode contribuir para construção de comunidades felizes?

JSS. Sim, mas se realizar uma descolonização do pensamento científico hegemônico. A ciência foi ordenada para o “progresso”, na colonização, e reordenada para o “desenvolvimento”, na globalização. Muitos não percebem que ambos, o progresso e o desenvolvimento, são mitos criados para ocultar o capitalismo e a dicotomia superior-inferior que viabiliza sua expansão incontrolável. Com seu objetivo insano de produção infinita de riqueza material, em um planeta finito, através de crescimento ilimitado e sob o critério do lucro máximo no curto prazo e a qualquer custo, o capitalismo é um sistema injusto que só pode operar através de corrupção para comprar a cumplicidade das elites em qualquer território que necessita penetrar. Então, para não anunciar que estava chegando o capitalismo, para não ter que explicar sua lógica injusta de acumulação com concentração e por despossessão, os impérios ocidentais criaram uma ideia sedutora capaz de galvanizar mentes e conquistar corações de líderes de todas as geografias, ideologias e religiões. Essa foi a “ideia de progresso”, com suas promessas de prosperidade, felicidade e paz para todos os povos. Depois da Segunda Guerra Mundial, aproveitando que a humanidade estava desencantada com a ideia de progresso, Os Estados Unidos, a nova potência capitalista hegemônica, substituiu a ideia de progresso pela ideia de desenvolvimento, mantendo as mesmas promessas da primeira. Então, progresso = desenvolvimento = capitalismo. Assim, toda alternativa de desenvolvimento é uma alternativa capitalista. Portanto, a humanidade não necessita de alternativas de (mas de alternativas ao) desenvolvimento, porque o “desenvolvimento”, ou seja, o capitalismo, não tem soluções para “problemas de desenvolvimento” (pobreza, fome) criados por suas próprias contradições. No momento, o sistema-mundo, moderno/colonial, está em uma crise sistêmica que prenuncia seu colapso antes de 2050. A civilização ocidental está em crise porque não consegue sustentar a vida na Terra, além de não ter cumprido suas promessas de prosperidade, felicidade e paz para todos os povos. É nesse contexto, da crise do desenvolvimento e suas alternativas, que surge o paradigma do Bem Viver, ainda em construção, alternativo ao desenvolvimento. Orientado para a vida, e não para o desenvolvimento, esse paradigma: (a) rejeita a meta universal imposta pela comunidade internacional para todos os povos, “ser desenvolvido”, porque, para um povo, o fim é ser feliz com um modo de vida sustentável; (b) não aceita a existência de um modo de vida superior, o desenvolvimento, que devemos emular e alcançar, nem de um modo de vida inferior, o subdesenvolvimento, que devemos rejeitar e superar, porque nunca fomos, não somos nem seremos desenvolvidos-subdesenvolvidos, já que sempre fomos, somos e seremos apenas diferentes; (c) não reconhece a dicotomia superior-inferior, concebida a partir da noção de raça, que classificou a humanidade em civilizados-primitivos, durante o colonialismo imperial, e nos hierarquiza em desenvolvidos-subdesenvolvidos no atual imperialismo sem colônias; e, (d) não vê contribuições no individualismo, egoísmo, competição, inerentes ao modo de produzir e consumir do capitalismo, pois cultiva o comunitarianismo, solidariedade, reciprocidade, complementariedade, cuidado com o Outro humano e não humano. Para o paradigma do Bem Viver, nada é anterior nem superior à vida, que é a origem, centro e fim de todo o pensar e atuar humano. Portanto, para que a ciência, hoje ordenada para o “desenvolvimento”, contribua à construção de comunidades felizes com modos de vida sustentáveis, será imprescindível romper com a geopolítica eurocêntrica do conhecimento e abraçar as Epistemologias do Sul, que nos ensinam a aprender desde o Sul, com o Sul e para o Sul, derrubando a premissa ocidental de que ‘o relevante’ existe sempre em determinados idiomas, é criado sempre por determinados atores e nos chega sempre de determinados lugares, que nunca coincidem com nossos idiomas, atores e lugares. Isso exige um processo de descolonização cultural e epistemológica do pensamento científico hegemônico que sustenta o paradigma ocidental de desenvolvimento, o que inclui a construção de respostas para perguntas como, por exemplo: (1) Quem inventou as premissas (verdades) constitutivas da ideia de progresso/desenvolvimento?; (2) Desde que lugar geográfico esses atores enunciaram suas/essas verdades (premissas)?; (3) Em que momento histórico isso aconteceu?; (4) Com que intenção política esses atores criaram essas verdades?; (5) que processos institucionais transferiram essas verdades até nós?; e (6) Que instituições ainda hoje reproduzem essas verdades entre nós? Existem outas perguntas afins, tais como: Porque, depois de séculos de “progresso” e décadas de “desenvolvimento”, a humanidade segue mais desigual e o Planeta mais vulnerável? Por que, depois de séculos sendo “civilizada” pela Europa, na colonização, e décadas sendo “desenvolvida” pelos Estados Unidos, na globalização, a América Latina é hoje a região mais desigual do mundo, em distribuição de renda e terras? No caso do Semiárido Brasileiro, se a comunidade de cientistas de uma instituição responder coletivamente a essas perguntas, o mais provável é que encontre razões relevantes para, porque tem sentido, reorientar sua ciência para o Bem Viver, ou seja, para a felicidade dos povos do Semiárido e a sustentabilidade de modos de vida resilientes para a convivência com a semiaridez.


O Colibri: Que sugestões você propõe para quem aspirar ser um cientista hoje?

JSS. Como vivemos em um mundo vazio de valores, no contexto da atual crise civilizatória, tenho apenas uma recomendação para alguém que aspirar ser um cientista hoje: incorporar a dimensão ética em sua prática científica. Por causa dos mitos da neutralidade da ciência e da objetividade do saber científico, a dimensão ética foi enjaulada no processo de inovação. Em sua novela-ficção Nova Atlântida, Francis Bacon propôs a Casa de Salomão, a ciência organizada, superior, que descobre as “verdades científicas” com as quais o Estado, inferior, governa a sociedade. Segundo o Filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, aí nasceu a hybris do ‘ponto zero’, que, em minha percepção, gera o autismo científico que enjaula a ética no processo de inovação em detrimento da vida humana e não humana. Enquanto o autismo é um transtorno do desenvolvimento sensorial, que ocorre na infância e cria um mundo particular para alguém que só se sente bem em seu interior, o autismo científico é um transtorno no sistema de verdades sobre o que é e como funciona a realidade, que ocorre entre cientistas durante sua (de)formação profissional. A maioria dos afetados por esta des/ordem científica é refém de um não-lugar e está condenada a operar apenas dentro dele. Nesse mundo determinado pela razão, sem lugar para a emoção, a ética é percebida como desnecessária, pois nele não há vida, só coisas (“objetos” de pesquisa), ou é vista como um obstáculo ao “progresso” da tecnociência e ao “desenvolvimento” das sociedades, ou seja, um “estorvo” ao modo de inovação capitalista, que é patriarcal, racial, violento, desigual, injusto, etnocida, epistemicida, ecocida. Porém, pensando como Castro-Gómez, a ideia de ciência moderna pressupõe um conhecimento que nega seu lugar de enunciação para legitimar sua neutralidade, objetividade, universalidade. Mas essa pretensão de autoridade absoluta constitui a mais radical das posições políticas e ideológicas. A aspiração de universalidade nega outras formas de conhecer e intervir e transforma o detentor da razão e da verdade no “legítimo” porta-voz de todos. A hybris é a prepotência do ‘ponto zero’ (não-lugar), a arrogância de quem nega seus valores e interesses humanos, posição política e subjetividade para falar em nome de todos. Operando sempre sob o argumento da autoridade e sem princípios éticos, nunca sob a autoridade do argumento e da ética, os cientistas autistas são os únicos capazes de enunciar verdades, discernir entre o certo e o errado, distinguir o falso do verdadeiro, decidir o que deve ou não ser feito com o poder transformador da ciência. Porém, em nossa percepção, um cientista não tem o direito de decidir sozinho o que deve ser feito com o poder transformador da ciência apenas por dominar o know how, o como fazer, sem a participação de representantes da diversidade da sociedade. Se a ética não for libertada da jaula que a manieta no processo de inovação, esses semideuses continuarão sacrificando a vida humana e não humana no falso altar do desenvolvimento (capitalismo), como ocorre na CTNBio que, emulando a Casa de Salomão, para que a ética não estorve a modernização do agronegócio, ou seja, da agricultura capitalista, aprova a liberação de todos os organismos geneticamente modificados (OGMs) propostos no Brasil. Até quando? A que custo?


 
 
 

Comments


Featured Posts
Archive
Follow Me
  • Grey Facebook Icon
  • Grey Twitter Icon
  • Grey Instagram Icon
  • Grey Pinterest Icon
bottom of page